Estado registra mais de 286 mil casos de trabalho infantil; só em Manaus, são mais de 50 mil crianças e adolescentes afetados

O Amazonas enfrenta uma crise silenciosa que ameaça o futuro de toda uma geração: o trabalho infantil. Segundo dados divulgados em 2024 pelo IBGE, mais de 286 mil crianças e adolescentes estão em situação de trabalho infantil no estado. Só em Manaus, o número passa dos 50 mil, conforme destacou a desembargadora Joicilene Jerônimo Freire, do Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região (TRT-11).
As formas de exploração são diversas e vão desde a atuação como ambulantes e catadores de recicláveis, passando por serviços domésticos exaustivos, até situações mais graves, como prostituição infantil, envolvimento com tráfico de drogas e trabalho análogo à escravidão em áreas rurais e ribeirinhas.
Nas áreas urbanas, a cena se repete: crianças e adolescentes vendendo doces, água ou pedindo dinheiro nos sinais de trânsito de Manaus. O que muitos tratam com naturalidade ou compaixão, na verdade, representa uma das expressões mais visíveis do trabalho infantil.
Ciclo vicioso
Petrônio Neto, conselheiro tutelar da Zona Sul 2 de Manaus, conhece bem essa realidade. Para ele, a permanência das crianças nos sinais é consequência direta da falta de entendimento da população sobre o que é ou não permitido, e da ausência de políticas eficazes de enfrentamento.
“Se os seres humanos continuarem costumeiramente dando dinheiro no sinal, essas famílias nunca vão sair dali. Nunca. Porque a gente pode até tirar uma hoje, conseguir uma Bolsa Família, mas amanhã aparece outro. Gera um ciclo vicioso que parece não ter fim”, afirmou Petrônio.
O conselheiro também explica que o Conselho Tutelar não tem poder para retirar à força crianças e famílias das ruas, o que exige a atuação coordenada de outros órgãos. “Quando recebemos denúncia, requisitamos profissionais capacitados para fazer a abordagem com segurança, porque se a gente chega de qualquer jeito, eles fogem entre os carros. Pode causar acidente ou até homicídio”, alerta.
Além disso, ele revela um entrave jurídico e institucional que compromete a seriedade com que o problema é tratado:
“Nós identificamos, muitas vezes, que a gente levou essas famílias que a gente pegou no sinal para delegacia. E lá era feito apenas um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), porque é considerado um crime de menor potencial ofensivo, não por decisão do delegado, mas pela lei. E aí se entende que pobreza não é crime. Mas e a exploração do trabalho infantil, como é que fica? Fica esse questionamento. Talvez seja necessário ir até Brasília propor um projeto de lei que preveja esse comportamento, que infelizmente virou cultural em Manaus.”
Petrônio reforça que a participação da sociedade é essencial. “O Conselho Tutelar não é onipresente. A gente precisa que a população denuncie. A denúncia acaba sendo primordial para que a gente possa ter conhecimento e aplicar as medidas necessárias para que aquelas crianças e aqueles adolescentes não tornem a ter seu direito violado”.
Subnotificações agravam o cenário

Mesmo os dados mais alarmantes não dão conta da real extensão do problema. Segundo o juiz do trabalho Igo Zany, os casos registrados pelo IBGE podem representar apenas uma parte do problema.
“Esses dados não refletem a realidade, havendo muitas subnotificações e silenciamentos de vítimas, o que pode multiplicar este número em duas ou três vezes mais, sem considerar as barreiras geográficas e socioambientais da região que se somam à ausência do Estado no inteiro território amazonense”, alerta.
Poder estadual

A Secretaria de Estado da Assistência Social e Combate à Fome (Seas) informou que realiza ações estratégicas que visam discutir e conscientizar sobre o tema nos sete centros de convivência da capital, por meio de palestras, rodas de conversa e dinâmicas com as famílias que participam das atividades dos centros.
Ainda segundo a pasta, o atendimento de casos de trabalho infantil é executado pelos CRAS e CREAS, que são de competência do município. Além do Disque 100, que recebe denúncias, esses dois equipamentos recebem e verificam denúncias referentes ao trabalho infantil para a partir daí tomar as medidas cabíveis.
Poder municipal

A Prefeitura de Manaus realizou, no último mês, o “Dia D” de Enfrentamento ao Trabalho Infantil, como parte da campanha “O trocado que custa uma infância”, no Casarão da Inovação Cassina, localizado no centro histórico.
O evento contou com apresentações culturais protagonizadas por crianças acolhidas por instituições da rede de proteção, que emocionaram o público presente ao expressar, por meio da arte, a importância de garantir uma infância plena, protegida e livre de qualquer forma de exploração.
“A campanha tem como principal objetivo promover a conscientização da população e fortalecer a rede de proteção social, garantindo que crianças e adolescentes tenham seus direitos respeitados e acesso a um desenvolvimento saudável e digno”, destacou o titular da Semasc, Saullo Vianna.
O “Dia D” marca o início de uma mobilização contínua, que se estenderá até dezembro, com foco especial em períodos críticos, como festas e datas comerciais. A campanha inclui capacitações com comerciantes, oficinas em escolas, mobilizações digitais e ações urbanas, como o “Semáforo da Reflexão”, realizadas em pontos estratégicos da cidade.
A desembargadora do TJ-AM, Joana Meirelles, ressaltou a importância da união entre as instituições públicas e a sociedade civil no enfrentamento ao trabalho infantil, destacando que essa articulação fortalece a rede de proteção e contribui significativamente para a transformação da realidade de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
“A luta contra o trabalho infantil exige o esforço conjunto de todas as instituições comprometidas com a justiça e a proteção dos direitos humanos. A articulação com o Tribunal de Justiça do Amazonas, o Ministério Público do Trabalho do Amazonas e parceiros da sociedade civil representa um passo fundamental na construção de uma rede forte e atuante. Quando unimos nossos esforços, potencializamos os resultados e conseguimos transformar realidades. É com união e responsabilidade social que avançamos na garantia de uma infância protegida, livre e respeitada”, frisou.
A procuradora do MPT-AM, Erika Emediato, salientou que a campanha cumpre um papel essencial na conscientização da sociedade sobre os impactos negativos do trabalho infantojuvenil na saúde física, mental e intelectual das crianças e adolescentes. Ela enfatizou que, embora oferecer dinheiro a crianças em situação de trabalho nas ruas pareça um gesto de solidariedade, na prática, contribui para a perpetuação da exploração.
“Essa campanha é de extrema relevância para sensibilizar a sociedade sobre os prejuízos do trabalho infantojuvenil à saúde de crianças e adolescentes, prejuízos que abrangem aspectos físicos, mentais e intelectuais. Muitas vezes, ao oferecer um trocado, a pessoa acredita estar ajudando, quando, na verdade, está contribuindo para a manutenção dessa prática. Por isso, é essencial que todos compreendam que existem formas mais eficazes de enfrentamento, como o encaminhamento dessas crianças e adolescentes aos programas e serviços ofertados pelo poder público”, concluiu.
Com informações assessoria